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Sobre Problemas mal-postos e o ofício do designer


O século XXI inicia trazendo um conjunto de problemas causados pela ação humana no planeta que, mesmo que anteriormente existentes, agora se apresentam com níveis de complexidade até então inéditos. Conhecida na literatura pelo termo "Wicked Problems" essa grande categoria, criada pela necessidade de entender a natureza dos problemas que levam ao fracasso de iniciativas importantes para a população, é designada no termo em inglês traduzido livremente como "problemas perversos" (e doravante tratados como problemas mal-postos, para evitar julgamentos morais associados ao termo original e que não nos interessam no momento) em contraponto aos "problemas domados" até então tratados pelas ciências. Tais problemas domados se entendem como problemas de difícil solução porém bem definidos. Exemplos de problemas domados são a resolução de uma equação, a análise de uma nova estrutura molecular e o xeque-mate por um enxadrista em 5 movimentos.

Os problemas mal-postos são, por definição, difíceis de resolver, mas isso não significa que os problemas domados sejam necessariamente fáceis. Um problema notoriamente difícil, como a prova do último teorema de Fermat, é apresentado como problema domado pela definição de Rittel, porque é um problema com uma série de características bem definidas. As dificuldades de resolver problemas mal-postos, no entanto, são fundamentalmente diferentes daquelas da solução de problemas domados.

Características de problemas mal postos

Para Rittel e Webber no artigo seminal Dilemmas in a general theory of planning. tais problemas têm algumas características que se repetem minimamente, sendo as mais importantes:


a) Não existe uma formulação definitiva para um problema mal-posto.

Os autores defendem que a abordagem sistêmica clássica utilizada, por exemplo, pelos militares e pelos projetos espaciais nos Estados Unidos da América, tem como base a premissa que o planejamento do projeto pode ser dividido em fases claramente distintas. No caso dos problemas mal-postos não é possível conhecer o problema sem conhecer o contexto.

A abordagem mais adequada para sua solução passa pela construção de um processo argumentativo, no qual uma imagem do problema e sua solução emerge gradativamente dos participantes. A lógica por trás dessa propriedade inclui, de certa forma, a lógica das propriedades a e d.


b) Problemas mal-postos não tem 'regra de parada'.

Em contraponto aos problemas domados, que tem critérios bem definidos para quando se chega à uma solução (lembrando que Rittel e Weber tomam como exemplo uma partida de Xadrez ou uma equação matemática), os problemas mal-postos tem como característica que o processo de resolver o problema é o mesmo para entender sua natureza. Dessa forma a definição de um fim para a atividade de resolver o problema não está ligada à uma lógica intrínseca ao problema, mas sim à questões externas a ele, o projeto "chega ao fim de recursos financeiros, do prazo ou da paciência". Sempre existe a possibilidade de continuar tentando descobrir o que, na opinião da equipe envolvida, são soluções com diferentes relacionamentos entre conseqüências desejáveis e indesejáveis.


c) Soluções para problemas mal-postos não são do tipo verdadeiras-ou-falsas, mas sim boas-ou-ruins.

Os autores entendem que os julgamentos de soluções para problemas mal-postos estão relacionados à juízos de valor, não a julgamentos factuais. Partindo da premissa que os vários envolvidos no projeto apresentam diferenças de opinião influenciadas por seus próprios interesses, não é possível encontrar uma solução objetiva, mas sim uma solução satisfatória, caso haja, para que não inclua consequências intoleráveis ou indesejáveis. É possível dizer assim que a avaliação das idéias de solução no projeto é um processo intrinsecamente político.


d) Não existe um teste imediato e definitivo para a solução de um problema mal-posto.

Problemas domados apresentam a possibilidade, às pessoas envolvidas no problema, de ter controle completo sobre o teste de sua solução. No caso dos problemas mal-postos, por terem uma estrutura de causa-consequência significativamente dinâmica, a própria implementação da solução cria "ondas de conseqüências por um longo período de tempo - virtualmente ilimitado".


e) Toda solução para um problema mal-posto é uma “operação única”; porque não há oportunidade de aprender por tentativa e erro, e cada tentativa conta significativamente.

De forma diversa aos problemas domados, que podem se dar à possibilidade de testar várias soluções sem gerar um grande impacto para o problema a ser resolvido, os problemas mal-postos têm grandes conseqüências para cada solução implementada. Cada proposta posta em prática gera "traços" que não podem ser desfeitos. Tomando com exemplo as políticas públicas, os autores reforçam que cada solução implica em grandes somas em dinheiro e impacto de longo prazo nas vidas das pessoas. Cada tentativa posterior de corrigir desvios ou erros leva sempre a novos problemas mal-postos.


f) Problemas mal-postos não têm um conjunto enumerável (ou explicável) de possíveis soluções, nem existe um conjunto bem descrito de operações permitidas que possam ser incorporadas ao plano.

Ao contrário do xadrez com seu universo de possibilidades de solução limitados, exemplo citado pelos autores, ao enfrentar problemas mal-postos é praticamente impossível provar que foram elencadas todas as soluções possíveis, pois isso exigiria provar que não existe outra solução possível que não tenha sido encontrado.

g) Todo problema mal-posto é essencialmente único.

O problema é essencialmente único no sentido de, por mais que sejam feitas longas listas de semelhanças entre um problema atual e um anterior, sempre pode haver uma propriedade distinta adicional que influencia diretamente a solução adequada a ser encontrada. Não há o conceito de "classes" de problemas mal-postos, que representam um conjunto semelhante de elementos inerentes à esses problemas, que propiciem uma solução que se adeque aos diversos membros dessa classe.


h) Todo problema mal-posto pode ser considerado um sintoma de outro problema.

Problemas mal-postos podem ser entendidos como o sintoma de outro problema de “nível superior”. Da mesma forma podem compreender outros problemas "abaixo" deles. A definição de qual o problema que deve ser atacado primeiro não existe em um nível “natural”.


i) A existência de uma discrepância representando um problema mal-posto pode ser explicada de várias maneiras; a escolha da explicação determina a natureza da solução do problema.

Por discrepância entenda-se a diferença entre uma estado das coisas atual e um estado de coisas desejado. Entendendo que pode haver uma divergência legítima entre os envolvidos no tocante às causas que levam à essa discrepância, em problemas mal-postos não existe uma forma objetiva de decidir qual dessas causas deve ser levada em conta na sua solução. Essa propriedade reforça como o design é uma atividade propensa a erros, sempre que questões de explicação causal estejam envolvidas.


j) O designer não tem o direito de estar errado.

As consequências das decisões tomadas são de responsabilidade da equipe que conduz os projetos, posto que essas conseqüências têm efeitos irreversíveis na vida das pessoas.


Sobre designers e problemas mal-postos

Existe um entendimento de que os problemas que merecem uma atenção maior das instituições de inovação, estão nessa categoria hoje (FRIEDMAN, 2014). A literatura também nos informa que pessoas com formação acadêmica dentro das ciências, seja naturais ou exatas, origem de boa parte dos profissionais do planejamento e administração pública ou privada do século XX (WITZEL, 2019), são formados para lidar com problemas que são em si definíveis e passíveis de serem decompostos em partes menores, que por sua vez podem ter soluções bem sucedidas nessas pequenas partes, contribuindo para a solução do todo.


Como descrito acima, essa nova categoria de projetos - em especial os que tratam de problemas do planejamento social ou político - demandam outra abordagem profissional. Além de serem mal definidos, e mesmo quando é possível decompor em partes, por não ter uma "solução" definitiva, tem a característica de ao se encontrar novas soluções criar-se novos problemas, demandando uma visão de "rede" no lugar de "caixas".


Em meio a esse cenário, ocorre uma expansão da atuação dos designers em novas áreas na sociedade, com ênfase em projetos considerados de problemas mal-postos, tendo como provável motivo a capacidade de aprender com outras disciplinas e atuar como articulador de conhecimentos e atividades em equipes multidisciplinares.


Se tradicionalmente algumas subdivisões de atuação profissional do designer são mais popularmente conhecidas, como o design gráfico ou de produto, essas novas práticas, que abrigam uma quantidade sempre crescente de métodos e ideias, foram responsáveis por conduzir várias iniciativas nos processos de solução dessas novas questões, e levar o profissional para outras esferas de atuação.


Esse momento é marcado pelo fenômeno da popularização no meio corporativo do conceito de Design Thinking, uma declaração da necessidade, por parte da sociedade, de uma forma de pensar que está associada à formação e prática dos Designers.


Notadamente a partir da década de 2010 vimos uma variedade de iniciativas que buscam atender às necessidades emergentes dos problemas mal-postos. Essas iniciativas, com seus sucessos e fracassos, serão tema de um próximo texto.

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